Frio Cortante
(Patrícia Franconere)
RÚBRICA NARRATIVA/POÉTICA
Tinha
acabado de voltar da rua e a presença de um estranho, sentado a mesa para o
jantar, onde o marido freqüentemente se sentava, foi motivo da irritação. Coisa
que raramente acontecia até então. Evitou apresentações e explicações. Nessa
noite nem jantou. Não queria fazer sala para o desconhecido. Bancou a mal
educada, a anti-social e foi direto para quarto. Na escuridão, botou seu pen
drive no rádio e ouviu músicas até tarde. Músicas antigas, que de certa forma, fazia
lembrar-se do marido. Sentiu saudade de um passado distante e de uma figura
masculina, que a memória só trazia em preto e branco. A angústia bateu de
frente. Minutos se passaram lentamente. Sentiu fome, mas não estava disposta a
encarar o homem. Não naquele momento. O olhar frio que o estranho lançou em sua
direção, poderia não ter afetado tanto, se ela não tivesse retribuído na mesma
proporção. O que seria aquilo? Ela preferia não pensar, já que naquele momento,
lhe faltou forças para manter energicamente seus direitos de mulher.
O estranho bateu
a porta algumas vezes, porém ela ignorou todas, até que por fim ele desistiu e
ela a muito custo adormeceu.
Uma hora
depois, acordou sobre saltada, com sede, mas a simples idéia de ter de se
levantar no frio cortante de inverno e pegar um copo d’água na cozinha, a fez
desistir. Lembrou-se com amargura das duas estátuas de cera, minutos antes de
enfiar-se no quarto. Desanimada, olhou
para janela e pelas frestas percebeu que o céu não havia clareado. Ainda era
noite deduziu. Sentiu-se aliviada por ter algumas horas a mais de sono. Sem
perda de tempo, cobriu a cabeça com um cobertor desgastado, para proteger-se do
vento gelado que vinha do vidro quebrado da janela. Seus olhos estavam pesados,
como se um algo estivesse puxando as pálpebras para baixo. Num impulso,
levantou-se da cama e colou os ouvidos na porta. O único som ouvido foi o um
ronco profundo e vigoroso vindo da sala. O sono doía no corpo e a idéia de ter aquele
homem estirado em sua cama lhe corroia a alma. Agitada, voltou pra cama,
virou-se de um lado para o outro e quando encontrou uma posição confortável,
adormeceu embalada pelo tic-tac do relógio que trabalhava atento sobre
cabeceira. O tempo que a noite levou para virar dia demorou horas, mas seu
cérebro perturbado interpretou como
frações de segundo.
O
despertador tocou às seis e meia da manhã como de costume. Os sons das batidas
estridentes penetraram em seu ouvindo como se fossem trombetas anunciando a
chegada de um exército. Irritada, travou o alarme do relógio. Aquela era a pior
hora do dia. Hora de levantar e encarar a realidade. “Que merda” pensou. Queria
mais cinco minutos na cama, para descasar o corpo cansado do nada. Tentou dormir
mais alguns minutos, mas os sons característicos da manhã, fizeram-na despertar de vez. De certo, o homem já estava
de pé fazendo sua higiene pessoal antes de ir para o trabalho.
Demorou
alguns minutos para que ela se trocasse: Nessa manhã em especial, queria chamar
a atenção. Mostrar que é mulher e que ainda está viva. Ignorando o frio, colocou
seu vestido laranja, fez um coque no cabelo e caprichou no batom carmim. Talvez
assim, o desconhecido a olhasse com outros olhos.
Desceu
lentamente as escadas, fez gestos delicados, amplamente estudados.
O
desconhecido estava sentado à mesa da sala lendo um jornal e sequer notou sua
presença.
FIM.