terça-feira, 8 de outubro de 2013

Frio Cortante



Frio Cortante
(Patrícia Franconere)



RÚBRICA NARRATIVA/POÉTICA



Tinha acabado de voltar da rua e a presença de um estranho, sentado a mesa para o jantar, onde o marido freqüentemente se sentava, foi motivo da irritação. Coisa que raramente acontecia até então. Evitou apresentações e explicações. Nessa noite nem jantou. Não queria fazer sala para o desconhecido. Bancou a mal educada, a anti-social e foi direto para quarto. Na escuridão, botou seu pen drive no rádio e ouviu músicas até tarde. Músicas antigas, que de certa forma, fazia lembrar-se do marido. Sentiu saudade de um passado distante e de uma figura masculina, que a memória só trazia em preto e branco. A angústia bateu de frente. Minutos se passaram lentamente. Sentiu fome, mas não estava disposta a encarar o homem. Não naquele momento. O olhar frio que o estranho lançou em sua direção, poderia não ter afetado tanto, se ela não tivesse retribuído na mesma proporção. O que seria aquilo? Ela preferia não pensar, já que naquele momento, lhe faltou forças para manter energicamente seus direitos de mulher.

O estranho bateu a porta algumas vezes, porém ela ignorou todas, até que por fim ele desistiu e ela a muito custo adormeceu.

Uma hora depois, acordou sobre saltada, com sede, mas a simples idéia de ter de se levantar no frio cortante de inverno e pegar um copo d’água na cozinha, a fez desistir. Lembrou-se com amargura das duas estátuas de cera, minutos antes de enfiar-se no quarto.  Desanimada, olhou para janela e pelas frestas percebeu que o céu não havia clareado. Ainda era noite deduziu. Sentiu-se aliviada por ter algumas horas a mais de sono. Sem perda de tempo, cobriu a cabeça com um cobertor desgastado, para proteger-se do vento gelado que vinha do vidro quebrado da janela. Seus olhos estavam pesados, como se um algo estivesse puxando as pálpebras para baixo. Num impulso, levantou-se da cama e colou os ouvidos na porta. O único som ouvido foi o um ronco profundo e vigoroso vindo da sala. O sono doía no corpo e a idéia de ter aquele homem estirado em sua cama lhe corroia a alma. Agitada, voltou pra cama, virou-se de um lado para o outro e quando encontrou uma posição confortável, adormeceu embalada pelo tic-tac do relógio que trabalhava atento sobre cabeceira. O tempo que a noite levou para virar dia demorou horas, mas seu cérebro perturbado  interpretou como frações de segundo.

O despertador tocou às seis e meia da manhã como de costume. Os sons das batidas estridentes penetraram em seu ouvindo como se fossem trombetas anunciando a chegada de um exército. Irritada, travou o alarme do relógio. Aquela era a pior hora do dia. Hora de levantar e encarar a realidade. “Que merda” pensou. Queria mais cinco minutos na cama, para descasar o corpo cansado do nada. Tentou dormir mais alguns minutos, mas os sons característicos da manhã, fizeram-na  despertar de vez. De certo, o homem já estava de pé fazendo sua higiene pessoal antes de ir para o trabalho.

Demorou alguns minutos para que ela se trocasse: Nessa manhã em especial, queria chamar a atenção. Mostrar que é mulher e que ainda está viva. Ignorando o frio, colocou seu vestido laranja, fez um coque no cabelo e caprichou no batom carmim. Talvez assim, o desconhecido a olhasse com outros olhos.
Desceu lentamente as escadas, fez gestos delicados, amplamente estudados. 
O desconhecido estava sentado à mesa da sala lendo um jornal e sequer notou sua presença.


FIM.


terça-feira, 1 de outubro de 2013

Apenas Uma Estação

Apenas uma Estação
(Patrícia Franconere)




- Próxima estação, Sé. Queiram por gentileza desembarcar pelo lado esquerdo do trem.


UMA CHUVA PASSAGEIRA

- Não me maltrate
- Não me machuque
- Cuida de mim.
- Você pode cuidar de mim?
- Eu sou importante pra você.
- Cuida de mim.
- Você é importante pra mim.
- Eu vou cuidar de você.
- Me dá um sorriso?
- Fala comigo?
-Preciso de um abraço.
-Preciso falar com você.
- Me conta seus sonhos?
-Me fala de você.
-Pra onde você vai?
-De onde você vem?

ESTRANHOS NO VAGÃO

- Ô, psiu! Cê não ouve cara? O operador do trem falou lado esquerdo.
- Acho que é a primeira vez que ele anda de metrô.
- Imagina! Todo mundo já andou de metrô.
- Quem falou isso pra você?
-Tem gente que só anda de carro.
-Tem gente que só anda de busão.
Tem gente que só anda de trem.
-Tem gente que mora perto de tudo.
-Tem gente que mora perto do nada.
-Tem gente que não anda debaixo da terra.
-Tem gente que não sai de casa.
- Olha...Olha...Olha!
- Ele ainda ta parado esperando a porta abrir.
-É do outro lado!
-Vai meu filho antes que o povo te derrube no chão!

-VAI PRO OUTRO LADO...VAI PRO OUTRO LADO...VAI PRO OUTRO LADO...

- Até que enfim.
- Saiu o coitado.

Tempo

-São tantas pessoas
-Que diariamente
-ENTRAM E SAEM ENTRAM E SAEM ENTRAM E SAEM...
- Cada um com suas histórias
-Cada um com seus problemas
- Já começou
- O EMPURRA... EMPURRA... EMPURRA... EMPURRA...
- No começo ninguém se conhece.
-Ai, sai pra lá!
- Você poderia afastar a sua mochila que ta me apertando?
-Desculpa foi sem querer.
- Dá pra tirar esse negócio da minha bunda?
- O que ele ta lendo?
- Não sei, não dá pra ver.
- O que te interessa o que ele ta lendo.
- Ele é culto.
- Ele gosta de Antoine de Saint-Exupéry.
- De quê?
- EXUPÉRY!
- Eu gosto de Tolstoi e Dostoièvski também.
- Acho que ele tá lendo cinquenta tons de cinza.
- Já ouví falar...Mas não entendo certas coisas.
- Use a imaginação!
- Olha lá na frente! Aquele cara tá rabiscando tudo?
- Ele ainda não aprendeu que se trata de um transporte público.
- Ele é público.

-Estranhos
-Todos os dias
-Na mesma hora
- Na mesma estação
- O mesmo vagão
-Eles entram
- O alto
-O baixo
-O gordo
-O magro
-A rica
- A pobre
- O feio
- O bonito
- O culto
- O ignorante

- No começo...

-NÃO SE FALAM...SÓ SE OLHAM...NÃO SE FALAM...SÓ SE OLHAM...

- Que mulher relachada! Vem de chinelos pro metrô!
- Que mulher metida! Vem de salto pro metrô!
- Aquele cara não dá atenção pra ninguém porque é culto.
- Aquele senhor humilde tem medo de mim.
- Aquele rapaz é jovem. Eu já fui assim também.
-  Ele deve ter tantas coisas novas  pra  contar.
-Aquele senhor de cabelos grisalhos deve ter tanta experiência pra trocar.
- Aquele cara interessante deve ser roqueiro.
- Aquela mina é “Patricinha”.
- NÃO SE FALM SÓ SE OLHAM...NÃO SE FALAM SÓ SE OLHAM...NÃO SE FALAM SÓ SE OLHAM...
- Os dias passam
- As pessoas se repetem
-ELES FALAM E SE OLHAM ELES FALAM E SE OLHAM ELES FALAM E SE OLHAM

Quando mesnos se espera...

-Um segura a porta.
-Outro puxa pela mochila.
-Um cede o lugar.
- Outro segura pra não cair.
-Alguém abraça.
-Um beija.
-Contam piadas.


 Quando menos se espera...

Estão sorrindo.


Próxima estação CORAÇÃO.Desembarque por qualquer lado do trem.

Ou se preferir...

FIQUE.













Fireboy

Fireboy
(Patrícia Franconere)



CRIANÇA NOVE ANOS DE IDADE, AVENTUREIRA, MAS OBEDIENTE. TEM UNIFORME DE BOMBEIRO E NÃO PODE ENTRAR NA COZINHA.
MÃE MAIS VELHA, SEVERA, NÃO ESCUTA MUITO BEM. CORAÇÃO GIGANTE



Personagens:

Locutor de Rádio
Mãe
Menino

Música:

“Tears in Heaven” (Eric Clapton)
“Uni Dune Te” (Trem da Alegria)

Mãe está na cozinha refogando arroz. O rádio está ligado.

Locutor – ZYD833  Bandeira 6 rádio difusão Ltda. 104,7MHz, São Paulo. Bandeira 6 a primeira do seu dial.

Começa a introdução da música.

Locutor-  “Tears in Heaven”.

Mãe aumenta o volume do rádio e volta para o fogão. Ela permanece por um tempo parada prestando atenção na música. Quando a música termina ela volta para as panelas.

Tempo

Menino entra em cena. Ele está vestindo roupa de bombeiro e tem um carro de bombeiros na mão. Ele vai entrar na cozinha.

Mãe – Fica no tapete... Fica no tapete... FICA  NO  TAPETE!

Menino fica parado no tapete que está na entrada da cozinha.

Mãe – Cozinha não é lugar de criança... Cozinha não é lugar de criança...COZINHA NÃO É LUGAR DE CRIANÇA!

Menino senta no tapete e começa a brincar com o carro de bombeiros.

Menino  - En on en on en on en on en on en on...
Mãe – Cozinha é perigosa pra criança. Tem gás, faca e fogo... Fogo...fogo...FOGO!

Tempo

Mãe – Tem sabão, detergente e álcool... Álcool... ALCOOL!

Tempo

Menino – Mãe to com sede.

Mãe não ouve.

Menino – Mãe to com sede.

Mãe não ouve.

Menino – A senhora vai fazer batata frita? Eu adoro batata frita! Faz tanto tempo que eu não como batata frita...

Mãe tira do freezer um saco de batata palito congelada e coloca sobre a pia.

Menino – Ebaaa! Batata frita!

Mãe volta para o fogão.

Menino – Mãe posso pegar uma bolacha?

Tempo

Menino – Mãe!

Tempo

 Menino - Posso pegar uma bolacha?

Tempo

Mãe – Cozinha não é lugar de criança... Cozinha não é lugar de criança...COZINHA NÃO É LUGAR DE CRIANÇA!
Menino – Eu sei mãe. Eu não vou entrar.

Mãe vai até o armário, pega a lata de bolachas e coloca sobre a mesa que fica ao lado da porta.O menino sem sair do tapete abre a lata retira uma bolacha e come. Logo em seguida ele enche a mão com bolachas  e senta no tapete. Ele come enquanto brinca.Mãe começa a chorar baixinho.

Menino – Por que a senhora ta chorando?

Tempo

Menino – Por que a senhora ta chorando?

Tempo

Menino – Eu fiz alguma coisa errada?

Tempo

Menino – Eu juro que nunca mais vou desobedecer.

Tempo

Menino – Eu juro que nunca mais vou entrar na cozinha.

Tempo

Mãe vai até o rádio e começa a trocar de estação. Ela passa batida  pela música do Trem da  Alegria “Uni Duni TÊ”.

Menino – Mãe deixa no Trem da Alegria!

Mãe volta às estações, deixa no Trem da Alegria e começa a cantar baixinho. O menino alegre canta também.

...A carruagem vai seguir viagem
E o Trem da Alegria vai pedir passagem
Na direção do amor que eu preciso
Do meu paraíso, doce paisagem

Vai nos levar para um mundo de magia
Onde a fantasia vai entrar na dança
E quando o brilho do amor chegar
Eu quero é mais brincar, eu quero ser criança

Uni duni duni tê, ô ô ô ô
Salamê minguê, ô ô ô ô
Sorvete colorê
Sonho encantado onde está você?...

Mãe olha para o tapete.

Mãe – Eu te amo meu filho!
Menino – Eu também te amo mãe.

Tempo

Mãe - Seu pequeno corte no dedo é pra mim um punhal fincado nas costas.

Tempo

Mãe - Sua gripe é minha pneumonia.

Tempo

Mãe - Sua dor de cabeça é  minha lobotomia.

Tempo

Mãe -  A sua ausência... A sua ausência...

Tempo

Mãe - É um peito sem coração.

Tempo

Mãe - É um afastar de alma.

Tempo

Mãe – Eco...

Tempo

Mãe – Oco...

Tempo

Mãe - Eco...Oco...

Tempo

Mãe - Sirene...Cinzas...Queimado...cinzas...Dor...cinzas...

Tempo

Mãe - Sirene...Amor...Sirene...Dor...

Tempo

Mãe - Vida Cinza.

Tempo

 Mãe - Cinza... Cinzas.

O telefone toca. O menino sai correndo pra sala.
 A mãe vai atender ao telefone.

Em off:
Menino – Quer que eu atenda mãe?

Tempo

Menino – Quer que eu atenda mãe?

Tempo

Menino - Cê ta surda mãe?
Mãe atende ao telefone.
Mãe – A missa será neste domingo na Igreja Santa Madre de Dio às seis da tarde.

Tempo

Mãe – Quanto tempo faz?

Tempo

Mãe - Dez anos... Dez anos que meu menino foi morar com Deus.
Menino - En on en on en on en on en on en...

Toca uma Sirene de bombeiros.

A luz cai em resistência.                                                             




  FIM.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013


Autoretrato

O vento sopra. Cambaleando e sendo levada pelo vento ela entra no palco. Veste um vestido esvoaçante. Passando pelo espaço a procura de algo para se firmar. Abraça uma árvore. Sente-se firme e relaxa. Analisa bem a árvore sua copa, seu tronco, suas raízes e se encanta. Quando vê esta dormindo, acorda em um susto porque há uma minhoca andando em sua mão. Sente algo em seu pé também olha para baixo,cheio de minhocas, cai uma minhoca em sua cabeça, olha para cima e há minhocas em todo canto da árvore. Desesperada, com nojo e assustada. Desgruda-se da árvore sentindo o vento que a empurra novamente para a árvore. Sente as minhocas em sua pele contorna a árvore e se desgruda novamente. Solta novamente no vento aprecia estar longe da árvore e das minhocas e começa a dançar com o vento sentindo-se livre leve e solta.

Tropeça em uma pedra e se esburracha no chão.

Fica por algum tempo ali sentindo o vento batendo nas costas e indo embora sente a terra úmida no rosto. Olha para a frente e vê uma flor uma simples margarida.

Ela- Oi flor!

Coloca a cabeça no chão novamente. Intrigada olha novamente a flor a analisando.

Ela- Seu caule é tão fino e suas pétalas tão compridas e grossas. Como uma base tão frágil pode sustentar uma cabeça tão grande?

A flor se sentindo insultada pelo cabeçuda mostra-lhe a língua. Ela simplesmente ri e olha para o chão.
Olha para a frente. Decidida.

Ela- Flor gostei de você! Agora será minha amiga.



Maria Inês Z. Vicente